Por Luis Miguel Modino
O vicariato de Pando ocupa o extremo norte da Bolívia, fronteira com o Brasil e o Perú, no meio da floresta amazônica. Alí é Bispo desde 2013 Dom Eugenio Coter, nascido em Bergamo, Itália, terra natal de São João XXIII, de onde chegou como missionário à Bolívia no início dos anos noventa.
Dentro do processo do Sínodo para a Amazônia, Dom Coter desempenhou um papel proeminente, pelo fato dele fazer parte do Conselho Presinodal. Isso permitiu que ele estivesse por dentro dos documentos que foram preparados. Ao falar do Instumentum Laboris, reconhece que “é um documento que nasce da pastoral e da vivência eclesial”, de uma Igreja encarnada.
Nesta entrevista, o bispo do Vicariato de Pando aborda questões que estão presentes na discussão sinodal, incluindo aquelas que criam controvérsias e críticas ao processo em si e à figura do Papa Francisco, tentando fundamentar os porquês desses novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral que o Sínodo para a Amazônia pretende desenvolver. Mas, não podemos esquecer que o objetivo não é outro senão fazer com que o Sínodo “nos ajude a ser mais cristãos, mais Igreja e mais responsáveis, na vida social e na vida eclesial”.
Depois de estudar o Instrumentum Laboris, que será a base das discussões dos padres sinodais durante as três semanas da assembleia, quais são suas impressões?
Antes de tudo, é um documento que nasce da experiência pastoral e eclesial e, como tal, deve ser considerado. Nasce da história desta Igreja que está encarnada nesta realidade, e esta encarnação faz com que a Igreja, por um lado, ela assuma o que as pessoas vivem e o ilumine com o Evangelho, e por outro, abre a reflexão sobre o jeito de ser Igreja. Isso a ajuda a viver com mais autenticidade e atenção os processos de encarnação na história do povo, a questão de passar de uma Igreja que visita para uma Igreja que permanece, dentro desta história do povo.
O outro elemento convida, nesta encarnação, a ser uma comunidade humana e uma comunidade cristã. O convite para construir redes para que, juntos, os valores fundamentais e os direitos humanos possam ser promovidos, são as questões subjacentes e, dentro disso, o resgate da cultura e o cuidado da Casa Comum com seus desafios.
No contexto eclesial, a leitura, por um lado, leva a recolher esses desafios, que hoje se chama conversão ecológica. Digo isso, entre aspas, em termos teológicos pastorais, é o convite ao cristão, em sua encarnação concreta, para viver a dimensão ética de sua presença na realidade que vive. O outro grande desafio é, resgatando a positividade da experiência, ilumina-la com a luz da fé, construindo uma comunidade humana, uma comunidade que ajuda a viver a fé. Lá se responde aos desafios ministeriais que a Igreja tem como sua própria vida de fé.
Essa Igreja encarnada, presente na história do povo, e tão criticada em diferentes áreas, como influenciou o Instrumento de Trabalho e o processo sinodal?
Esta não é uma reflexão que nasce de uma cadeira teológica, mas nasce de uma cadeira pastoral, esta é a experiência de fundo. É um passo importante e expressa a dimensão da sinodalidade. Esta reflexão não é um sínodo porque em outubro há um Sínodo, mas este processo começou em 15 de outubro de 2017, retomando a caminhada de uma Igreja. É sinodal por essa razão, o momento das três semanas é um estágio dessa caminhada sinodal da Igreja.
Eu conheço as críticas, mas, nesse sentido, as críticas nascem de outra visão eclesial, que não quer levar em conta nem a Evangelii Gaudium, nem a Laudato Si, nem a Espicopalis Communio. A questão subjacente é esta: se eu não considero esses documentos como Magistério da Igreja, então me abro para ver a dimensão deste Sínodo como irrelevante, ou entre aspas, como conjuntural ou folclórico. Há aqueles que falam de um Sínodo paleolítico, no sentido de que ele quer se concentrar apenas na questão do desastre ecológico. Como indicou o discurso do Papa Francisco em Maldonado, fazemos escândalo no mundo quando se perde um animal, um pequeno ser vivo que a biologia estuda, porque um modo de vida desaparece, mas quando são as pessoas, quando são os povos, não, isso não nos preocupa.
Acho que nesse sentido temos que perceber que existe uma visão eclesial que esses documentos convidam a ver e a viver, e existe uma dimensão ecológica e ambiental que não é folclórica. Aqui, os especialistas em clima do mundo nos mostram isso, e dizem que esse caminho não coloca em risco o caminho do mundo, mas daqueles que sobreviverão. São as pessoas humanas que pagarão esses custos com uma vida muito mais difícil e complicada devido às adversidades do clima. Nas minhas palestras apresento esses estudos que demonstram como a floresta amazônica se alimenta da areia do Saara, onde, em termos populares, são setecentos mil caminhões de areia que a cada ano o vento traz do Saara para a Amazônia e se alimenta de todas as riquezas minerais de uma areia que em si é inerte, mas que faz a Amazônia viver.
A Amazônia recebe carbono dessa areia e libera oxigênio e cria rios de água que alimentam a chuva do mundo. Quando muda, começa a nevar no Saara, como aconteceu em 7 de janeiro de 2018. É um sinal de que o mundo retoma outros equilíbrios e que o mundo encontrará seu equilíbrio e o construirá novamente. O mundo sempre sobreviverá, são os dinossauros que desapareceram. Essas pessoas, todas essas críticas que estão em movimento, ignoram totalmente essa dimensão que tem que questionar a posição do cristão e da pessoa que quer viver sua humanidade, dentro do mundo com responsabilidade.
O senhor fala sobre a pastoral, sobre um trabalho desde a base, desde a realidade, poderíamos dizer que com o Papa Francisco um novo paradigma foi estabelecido, o que de alguma forma tem colocado em segundo plano a tentativa de romanização de toda a Igreja, para construir uma Igreja a partir da escuta da realidade, das situações concretas que são vividas em todos os lugares do mundo?
Não sei se isso começou exatamente com o Papa Francisco, acho que tem sido um processo constante que vem de muito além, provavelmente desde o Vaticano II. É uma visão de uma Igreja que não é apenas mestra, mas mãe. Como mestra pode proceder desde a autoridade da reflexão teológica, que é uma reflexão que pode iluminar a realidade. Mas desde o Vaticano II foi visto que a Igreja não é apenas uma mestra, mas também uma mãe, e como mãe ela vê a vida dos filhos e acompanha esta vida dos filhos com uma reflexão que traz, consoladora e orientadora, a imagem de Maria que viu essas coisas e as guardou em seu coração, meditando sobre elas. Ela não sabia exatamente onde esse caminho a levaria, mas essa era a maneira de Maria enxergar a realidade, e ler e ilumina-la à luz da iluminação que parte da realidade.
Este processo começa no Vaticano II e em continuidade com a força de ler a realidade que João Paulo II colocou e com a lucidez, pisando na terra, de Bento XVI, o Papa Francisco, com seu estilo, retomou esta meditação sobre Maria e a lançou, fortaleceu, a fez crescer e convida a Igreja a fazê-lo. Nesse sentido, é essa dimensão pastoral que nasce da realidade.
Um dos pontos que mais causou impacto na mídia após a publicação do Instrumentum Laboris é o tema da celebração da Eucaristia, presidida por homens casados. O senhor é bispo de um vicariato muito extenso, com muitas comunidades e poucos padres, como o senhor pode explicar para aqueles que vivem fora da Amazônia que isso é uma necessidade para a Igreja da Amazônia?
Seria preciso duas indicações, a primeira de que não há incompatibilidade entre o sacerdócio e o casamento, e isso peço aos teólogos que expliquem, e que nós, como pastores, iluminados pelos teólogos, possamos explicar aos catequistas, e eles, na formação, ao povo, acho que o caminho vai nessa direção. Os documentos e textos da Igreja sublinham que há compatibilidade, e na história da Igreja esta dimensão já existe e foi reconhecida. Seja em uma situação extraordinária, em situações de agitação social e guerra, como poderia ser o que o Papa Francisco se refere, no retorno do Panamá, na entrevista com a imprensa. Ele se refere aos bispos que, na presença do comunismo ateu, ordenaram aos camponeses, também casados, que mantinham viva a fé secretamente em face da perseguição que havia e superado isso, poder-se-ia dizer que essas pessoas eram sacerdotes e agiam em situações extraordinárias. Ou também em situações mais ordinárias e comuns, como a que aconteceu com o Papa Bento XVI, a inserção de pastores da Igreja Anglicana, que depois no catolicismo, continuaram com a família, trabalhando nas paróquias, é uma situação comum, não de guerra. O primeiro desafio é explicar que não há incompatibilidade.
O segundo desafio é pensar e fazer compreender a dimensão eucarística da fé cristã e católica, que é uma dimensão essencial, e de onde surge uma questão: pode-se ser Igreja católica sem Eucaristia? Celebrei em comunidades onde não houve missa por 18 anos e havia 40 famílias católicas. Eles tiveram que viajar uma semana para trazer algumas folhas de calamina para construir sua Igreja, porque foi a primeira missa depois de 18 anos. Mas são comunidades que são realmente católicas, são pessoas que emigraram, que estão lá, o catequista chegou, as religiosas chegaram e são batizados. O grande desafio é entender que a Eucaristia é algo próprio do cristão, e eu a uso próprio como um termo teológico a esse respeito. Não consigo pensar em uma vida cristã sem a Eucaristia.
Se ignorarmos isto, então todo o discurso cai, mas também cairiam os mártires de Abilene, os primeiros mártires da Igreja, que disseram que sem a Eucaristia não podemos viver. Queremos fazer tudo isso cair? Se a Eucaristia é fundamental na vida cristã, então há uma questão muito séria, a práxis da Igreja torna-se um impedimento à participação dos cristãos na Eucaristia e ao seu verdadeiro ser cristão. A palavra de Jesus aos apóstolos na multiplicação dos pães diz: deem-lhes vocês mesmos de comer.
Uma mãe, numa comunidade onde não houve missa por três anos, me disse, quando fui no encontro com o Papa em Puerto Maldonado, subindo o Rio Madre de Dios, parei para celebrar nesta comunidade, aproveitando que era domingo, ela me disse: quando o senhor manda alguém para nos dar a missa? Porque nós não somos evangélicos, nós somos católicos, com os evangélicos nós participamos da liturgia da Palavra, mas isso não é suficiente para nós, Jesus nos disse, façam isso em memória de mim. O que eu respondo?
Recentemente, foi publicado um texto do cardeal Kasper, perguntando como ser uma Igreja na tradição apostólica sem a celebração eucarística dominical regular, algo sobre o qual o senhor estava falando agora. Até que ponto essas reflexões de teólogos importantes e reconhecidos, como o cardeal Kasper, podem ajudar no processo sinodal a avançar neste campo?
Eu confio que esta iluminação teológica será capaz de nos permitir responder às necessidades e entender que não podemos ignorar essa necessidade, que atualmente é uma urgência, e é realmente uma urgência. Penso em outra dimensão, não apenas na Eucaristia, penso na dimensão da confissão. No meu vicariato há cerca de sessenta mil pessoas que vivem no campo, e elas, em caso de morte, vão querer confessar, o que lhes dizemos, que não podem dizer adeus a esta vida com o abraço misericordioso do perdão de Deus, o que respondemos? Se dissermos que a boa-fé é suficiente, então por que Jesus nos deu os sacramentos, e por que ele nos disse, vai e a quem perdoar os pecados, será perdoado. Se dissermos que a boa-fé é suficiente, todo o discurso sacramental da Igreja cai. Então, a boa-fé não é suficiente, precisamos dar respostas concretas.
Acredito que a iluminação dos teólogos nos dá a lucidez mental de entender a necessidade e a urgência impostergável de responder. Outra coisa que o Papa Francisco, ouvindo sobre isso, e ouvindo em sinodalidade a voz dos bispos que coletamos do povo, nos deu uma indicação, novos caminhos. Novos caminhos que podem ser antigos, porque na história da Igreja, se a conhecermos e aprofundarmos, descobriremos que muitos são os caminhos da Igreja percorridos em seus dois mil anos de história para responder a esses desafios em muitos lados do mundo. Só eles parecem novos para nós porque não sabemos o que já foi feito.
O senhor abordou a questão da ecologia integral. O papa Francisco em Puerto Maldonado, que depois é algo que apareceu no Documento Preparatório e no Instrumentum Laboris, denuncia as consequências do saque que a Amazônia está sofrendo e que afeta principalmente os povos indígenas. Nesse sentido, qual é a realidade dos povos indígenas e da população em geral, no Vicariato de Pando e na Amazônia boliviana?
A Amazônia boliviana enfrenta um grande desafio, que é o desmatamento. No ano passado, nos tornamos o segundo país com mais desmatamento per capita nos países da Amazônia e do mundo, e isso é um problema. É verdade que temos uma grande parte de selva, que em relação à população da Bolívia faz com que cada habitante tenha um alto número de árvores per capita. Mas também temos esse segundo lugar no desmatamento, e isso é um sinal. O outro sinal que temos experimentado é que essa situação de desmatamento está gerando duas realidades, uma é que a terra está se tornando árida, temos lugares que se tornaram savana, depois de dez, quinze anos de pampa, onde as vacas foram criadas. Tornou-se improdutivo, e as pessoas pobres que possuíam esta terra emigraram para as cidades porque foram deixadas com um pedaço de deserto, praticamente.
A situação de perda de fertilidade da terra perturba a vida das pessoas que vivem na Amazônia, e quem teria que ter a riqueza da Amazônia, está na pobreza devido à má gestão e manejo. Devemos ensiná-los, devemos fazê-los entender, mas o problema é que a classe política não vai além da visão extrativista da Amazônia. Aqui em Riberalta eles vivem da produção da castanha da Amazônia, que uma vez chamaram de castanha-do-pará, mas que é chamada de castanha-da-amazônia porque não é só do Brasil, é de outros países da Amazônia. Se a floresta for cortada, as 40 mil famílias que vivem desta castanha amazônica em Riberalta ficarão sem trabalho, estarão desempregadas. É verdade que se eles cortam e vendem a madeira, em um ano eles ganham muito dinheiro, mas para todos os outros anos eles estariam sem nada e na pobreza.
Na floresta, com muita visão da providência de Deus, todo ano dá o necessário para viver, bem trabalhada e bem cuidada. Antes de ser um problema no mundo enteiro, é nosso problema. Alguns dizem que devemos aproveitar a Amazônia para aqueles que vivem na Amazônia, e é verdade, mas se a destruímos não estamos aproveitando, estamos perdendo, e os primeiros que vão pagar, e que pagaram a perda, são os que vivem na Amazônia Existem aqueles que pensam que temos que cuidar disso para o bem de todos os outros, certamente, mas temos que fazer os políticos locais entenderem que, se eles não fazem isso pelos outros, eles têm que fazer pelas pessoas que moram aqui, sem cuidar a selva, eles vão perder a possibilidade de morar aqui.
Um conceito fundamental no Papa Francisco é o da conversão, que já está presente no documento de Aparecida, onde ele foi o relator, e depois aparece em Evangelli Gaudium, em Laudato Sí e em muitos de seus documentos. Até que ponto o Sínodo para a Amazônia pode ajudar a avançar nesta dimensão da conversão pastoral, ecológica e para a sinodalidade?
Fui convidado a pregar retiro espiritual a religiosos e religiosas, a falar aos catequistas, em termos de mística e espiritualidade sobre a conversão ecológica. É algo que vem de uma tradição que remonta a Francisco de Assis, um longo caminho. Penso na carta pastoral dos bispos da Bolívia sobre o cuidado com o meio ambiente, como expressão não de ecologia, mas de contemplação da Criação de Deus e oportunidade de vida, é uma questão muito sentida e muito forte. O Sínodo, penso eu, colocou-o nos corações dos cristãos, da Igreja e também do mundo.
Mas, ao lado disso, tenho visto o movimento juvenil de estudantes do ensino médio em todo o mundo, que está se espalhando. Entre nós falamos sobre conversão ecológica, eles estão falando sobre justiça climática, porque eles entendem que seu futuro está em jogo, e afirmam ao mundo político e econômico que isso é um roubo de seu futuro, é um sequestro da possibilidade de vida para eles. Entre nós, que falamos sobre conversão ecológica, isso já está além, esses jovens estão exigindo justiça, que é algo mais forte e desafiador. Nós, como Igreja, estamos em um caminho de atenção para isso, mas se olharmos, a sociedade civil, que se expressa nesses jovens, além de suas contradições, está dizendo muito mais, ou de uma maneira mais forte, e eles nos exigem uma consciência de responsabilidade.
Pessoalmente e como bispo do Vicariato Pando, o que o senhor espera do Sínodo para a Amazônia?
Que nos ajude-nos a ser mais cristãos, mais Igreja e mais responsáveis, na vida social e na vida eclesial. Que nos devolva a capacidade de estar dentro das coisas de todos os dias, contemplando, com mística, que no coração do cristão significa espiritualidade, contemplando a beleza e os desafios da natureza que nos renova e nos faz viver. Saber olhar para Deus Criador e, ao mesmo tempo, saber estar com a comunidade humana, partilhando a responsabilidade de cuidar disso, em vista de uma vida eclesial plena, que significa acompanhar a vida e a fé de cada um.
Isso significa ajudar as comunidades a ter serviços fundamentais permanentemente, encontrar esses novos caminhos, liturgias que nos permitam contemplar essa realidade e coletá-la em toda a sua grandeza nessa dimensão. Compartilhar redes humanas que ajudem a se formar e entender e cuidar do que Deus nos deu para que todos vivamos. Que nos ensine a viver uma vida sóbria, que os indígenas vivem dentro dos desafios de todos os dias. Aqueles de nós que vivem nas cidades da Amazônia, acho que teremos que aprender dentro desse processo de conversão ecológica para resgatar essa vida sóbria que nos permite criar condições mais habitáveis para todos.